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Agência de Notícias

Estudos na maior necrópole judaica do Ciclo da Borracha em Gurupá (PA)

Com apoio de moradores, especialistas do Museu Goeldi desenvolvem o primeiro levantamento etno-arqueológico, localizam túmulos, registram e coletam histórias orais. O município funcionou como posto avançado para comunidade judaica do século XIX até o início do século XX.
publicado: 24/07/2017 12h15, última modificação: 23/07/2017 10h25
Exibir carrossel de imagens Até agora 29 túmulos já foram inventariados. Foto: Claudia Cunha

Até agora 29 túmulos já foram inventariados. Foto: Claudia Cunha

Agência Museu Goeldi – Os pioneiros chegaram entre 1810 e 1820, na sequência dos tratados assinados entre Portugal e Inglaterra, que abriram os portos e o comércio. A entrada na Amazônia foi a cidade de Belém do Grão Pará e as primeiras famílias judaicas eram, na maioria, sefarditas, originários da Península Ibérica e do norte da África, provenientes especialmente, do Marrocos. Coordenado pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, um estudo etno-arqueológico no município paraense de Gurupá, arquipélago do Marajó, traz evidências da forte presença de judeus na história amazônica, a partir de estudos na maior necrópole judaica do Ciclo da Borracha.

A pesquisa no cemitério judaico de Gurupá, o maior em número de túmulos até agora identificado, está sendo feita pela bioarqueóloga Claudia Cunha, bolsista do Programa de Capacitação Institucional do Museu Goeldi, e pelos arqueólogos Fernando Marques, pesquisador do Museu Goeldi, e Diego Fonseca, doutorando da Universidade Federal do Pará, com o envolvimento da comunidade local, principalmente escolares, professores e historiadores. Esse primeiro levantamento etno-arqueológico, ocorrido entre 3 e 10 de julho, faz parte do projeto Origens, Cultura e Ambiente (OCA), coordenado pela arqueóloga Helena Pinto Lima, do Museu Goeldi.

É a maior necrópole judaica do Ciclo da BorrachaAté o momento foram inventariados 29 túmulos, mas este número pode crescer, pois ainda não foi feito levantamento na totalidade da necrópole – há áreas que estão tomadas pelo mato, além da possibilidade de existirem sepulturas soterradas ao longo do tempo. “É necessário limpar a vegetação totalmente e talvez fazer a análise geofísica do espaço – uma técnica de imagem que não implica em escavação”, explica Claudia Cunha.

A equipe de arqueólogos e voluntários fizeram a limpeza dos túmulos e do cemitério, recolheram informações nas lápides e com os moradores da redondeza. Também cuidaram do levantamento gráfico e fotográfico do cemitério. Cunha ressalta que “toda a abordagem não foi invasiva e resultou em maior visibilidade do local, além de um trabalho de conscientização junto à comunidade do seu entorno para a proteção da necrópole”.

Segundo os especialistas, o levantamento etno-arqueológico aponta que, ao contabilizar o número de túmulos inventariados, o cemitério de Gurupá é a maior necrópole judaica do Ciclo da Borracha no Pará – a mais antiga necrópole judaica da Amazônia está localizada em Belém, onde também se encontra a mais antiga sinagoga em funcionamento no Brasil.

“Nesta campanha, já foram resgatados túmulos cobertos por vegetação, todavia, existem áreas no cemitério onde prováveis sepulturas estejam em sub-superfície, o que irá requerer futuras intervenções para o correto mapeamento do cemitério. A maioria das sepulturas cujas datas ainda são visíveis são de fins do século XIX e inícios do século XX, embora alguns túmulos em tijoleira artesanal possam remeter a meados ou mesmo ao início do século XIX”, acrescenta Claudia Cunha.

Amazônia Judaica – Com a rota iniciando no Marrocos, os imigrantes judeus chegaram a Amazônia nas primeiras décadas do século XIX através da cidade de Belém, indo trabalhar, inicialmente, no comércio de produtos industrializados da capital para o interior e de produtos do extrativismo florestal do interior para Belém. Era época dos famosos regatões que percorriam largas extensões dos rios amazônicos. Na década de 1840, esse comércio passou a ser dominado pelo extrativismo e exportação da borracha. A dependência do comércio de produtos originários da floresta motivou a presença judaica para o interior da região, propiciando a instalação dos imigrantes nas proximidades das áreas de captação dos produtos a serem exportados.

Até 1850 chegariam à Amazônia cerca de 300 famílias judaicas. Elas fugiam da pobreza, super população, epidemias de cólera e peste bubônica, de perseguições e sofrimentos diversos como apedrejamento, além de destruição de sinagogas, como relatam em seus trabalhos Elias Salgado e Samuel Benchimol.

A arqueóloga Claudia Cunha pontua que “ainda na fase pioneira, jovens imigrantes recém chegados ao Brasil, que trabalhavam para casas comerciais de judeus estabelecidos em Belém, partiram para a região de Gurupá. A cidade tornou-se nesse período posto avançado destes comerciantes que logo mandavam buscar suas famílias ou noivas em Belém, na Espanha ou no Marrocos. Em Gurupá fixaram-se as famílias: Azulay, Serfaty, Aben-Athar, Sicsú, Dabilla, Alcaim, Castiel, Levy, entre outras”.

No Brasil atual vive a segunda maior população de praticantes da religião judaica na América Latina, mas a quantidade de descendentes dos pioneiros judeus sefarditas e asquenazes é muito maior. Segundo Simon Schwartzman, no final do século XX, os portadores dessa história seriam cerca de 400 mil brasileiros.

Até agora 29 túmulos já foram inventariadosHoje, em Gurupá, os pesquisadores do Museu Goeldi contam que existem descendentes das famílias judaicas, mas, até onde sabem, esses já não praticam a religião judaica. Cássia Benathar, professora e historiadora do município, é uma das descendentes das famílias pioneiras que estão engajadas como voluntária na pesquisa e na limpeza da necrópole judaica e estará envolvida nos futuros estudos sobre o espaço.

A população sabia do local, mas as visitas normalmente restringiam-se a pessoas de fora que ouviam falar do cemitério e visitavam o espaço. Claudia explica que há uma certa resistência a visitar cemitérios, quando a maioria das pessoas não reconhece um parentesco com os mortos. Muitas das lápides estão escritas apenas em hebraico e não havendo quem as leia, não reconhecem o morto como familiar. As sepulturas que estão em português ou nas duas línguas suscitam mais memórias.

“Até há algumas décadas, D. Raimunda Sabá tomava conta do cemitério na sua vizinhança, mas já está idosa. Esporadicamente, descendentes tentam cuidar dos túmulos de familiares”, explica Claudia Cunha. Por sua vez, a prefeitura de Gurupá cortou recentemente parte da vegetação invasora da necrópole a pedido dos vizinhos, que o viam se tornar um local de consumo de álcool e drogas. “No nosso primeiro dia para conhecer e investigar o cemitério, retiramos montes (literalmente) de folhas e galhos cortados pela prefeitura durante a última capina do local e três sacos de 100 litros de lixo composto na sua maioria de plástico, papel e vidro”, relembra a arqueóloga.

Dominando fluentemente o inglês e o francês, os imigrantes judeus se tornaram exportadores, liderando negócios no exterior, participando de congressos e exposições. Segundo Samuel Benchimol, “na época da crise da borracha, quando os exportadores ingleses, alemães e franceses abandonaram Manaus e Belém, coube aos judeus marroquinos brasileiros substituí-los nessas funções, fornecendo à sociedade local a liderança econômica e social necessária para sobreviver nas décadas de depressão e débâcle da borracha”.

Com as escavações na necrópole judaica do município de Gurupá teremos a chance de conhecer e entender mais um pouco da saga dos imigrantes pioneiros que ajudaram a escrever a história recente da Amazônia.

Texto: Joice Santos.